ROTEIRO
O grande desafio em escrever um bom roteiro é conseguir registrar no papel o que está na imaginação para que depois seja decodificado e transformado novamente em imagens fílmicas. Essa sequência de ações e imagens articuladas em planos e cenas, deve ser compreendida pela equipe técnica e elenco, assim como passar ao espectador aquilo que foi imaginado pelo roteirista que concebeu a estória. Em relação à roteirização, Michael Rabiger defende no livro Direção de Cinema Técnica e Estética:
A roteirização precisa ser guiada por um conhecimento de cinema, tanto como meio de comunicação quanto como processo de produção. Um roteiro é um projeto, e não uma forma de expressão completa. Ele vai ser transformado em um filme profissional bem acabado por várias pessoas especializadas e idiossincráticas trabalhando juntas – atores, os responsáveis pela fotografia, sonoplastia, direção de arte e etc. (MICHAEL RABIGER)
Para construir uma estória que seja compreensível e envolvente para o público, é fundamental estabelecer uma unidade dramática assim como delimitar um formato de gênero. A estrutura em três atos, formulada por Aristóteles em Arte Poética, organiza a narrativa em três momentos-chave: apresentação, conflito e resolução.
Para Aristóteles, o mundo é regido por uma harmonia que se reencontra na arte e no conhecimento. A ideia de harmonia é bastante presente no pensamento aristotélico, constantemente o filósofo faz referência à harmonia das partes de um todo – unidade e totalidade, o que veio aportar na célebre fórmula dos aristotélicos “ A beleza consiste em unidade na variedade”.
Importa pois que, como nas demais artes miméticas, a unidade da imitação resulte da unidade do objeto. Pelo que, na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a imitação seja una e total e que as partes estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma só, para que o conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajuntar ou não, sem que o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante do todo. (ARISTÓTELES)
Além da estrutura em três atos, Aristóteles em Arte Poética, categoriza os primeiros gêneros dividindo os dramas de acordo com o tipo de final e o estilo da estória. O resultado é seus quatro gêneros básicos: Trágico Simples, Trágico Complexo, Cômico simples e Cômico complexo.
Apesar de o filosofo grego possuir uma concepção estética apolínea, como designou Nietzsche em A Origem da Tragédia, o feio, encarado como desarmonia, é expressamente incluído no campo estético quando Aristóteles comenta sobre a comédia. Como confirma Ariano Suassuna em Iniciação à Estética: “não deixa, portanto, de ser admirável que Aristóteles tenha se referido expressamente a comedia, arte do feio, como fazendo legitimamente, parte do campo estético.”
A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, não contudo de toda sorte de vícios, mas só daquela parte do ignominioso que é o ridículo. O risível reside num defeito e numa tara que não apresentam caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento. (Aristóteles)
Por se tratar de uma comédia experimental, a estética dionisíaca do filme Amargo da Língua, propõe romper com as regras clássicas da dramaturgia do cinema-ilusão e com o ideal de harmonia, equilíbrio e ordem da estética apolínea. Embora mantenha a estrutura em três atos, algumas rupturas são feitas. Em vários momentos do filme essa narrativa-clássica é destruída e apresentada de forma surrealista e puramente sensorial, experimentando a linguagem das vanguardas da década de 20, surrealismo, dadaísmo, vídeo-arte, cinema-puro e demais referências que serão citadas na parte que aborda a Direção de Arte e Montagem.
Como foi dito, a estrutura em três atos é mantida, assim como as peripécias ou pontos de virada, mas a jornada do herói é vivida pelo antagonista Robson e não pelo protagonista, como é feito geralmente. O foco narrativo está nos personagens Fábio e Andrea, que por sua vez estão mais para vilões (são inclusive castigados no final) que para heróis que se transformam após a jornada.
A dicotomia maniqueísta do clássico é rejeitada, isto é, assim como no cinema moderno e na literatura moderna, os personagens são humanos com vícios e virtudes, nem totalmente maus, nem puramente bons. O termo Héroi não é utilizado aqui no sentido comum, onde é um exemplo ideal de ser humano, pois o tom satírico do filme apresenta os personagens como contraexemplos éticos. O termo jornada do herói, por sua vez, surgiu dos estudos de Joseph Campbell, como explica o autor abaixo.
Joseph Campbell lançou um livro chamado O herói de mil faces. A primeira publicação foi em 1949, sendo o resultado de um longo e minucioso trabalho que Campbell desenvolveu ao pesquisar a estrutura de mitos, lendas e fábulas. Seu trabalho de pesquisa também analisou histórias modernas, assim como muitos roteiros de filmes. Sua primeira observação foi que, em todas as histórias, existe um herói e que a narrativa gira em torno de suas peripécias. Nem sempre o herói é um ser humano, podendo ser um grupo de pessoas, um animal ou uma figura mitológica. Campbell desenvolveu uma estrutura de eventos que demonstra que o herói passa por doze etapas. (Albert Paul Dahoui)
Chisptofer Vogler, adaptou as ideias de Campbell, voltando-se para narrativas contemporâneas de cinema e TV. No livro Jornada do Escritor, o autor estruturou a jornada do herói de Campbell, dentro dos três atos, colocando quatro etapas por ato. Nos três parágrafos a seguir, consta a descrição dos três atos e das doze etapas vivenciadas pelo herói e a relação dessa estrutura com a narrativa do filme Amargo da Língua.
Primeiro Ato:
1) Apresentação do mundo comum em que o personagem habita.
Os cinco primeiros minutos apresentam os personagens e o universo da trama. Robson é apresentado como a vítima que acaba de acordar do boa noite cinderela. Andrea é apresentada como artista depressiva, no vídeo-arte dadaísta que compõe a sexta cena. Carlos e Bianca são apresentados na sétima cena como adolescentes a procura de LSD e Dandara é apresentada em seu ambiente comum e ao conversar com Fábio no telefone, expõe os objetivos do personagem protagonista, que é viajar pela América Latina junto com ela.
2) O chamado para aventura é feito ao protagonista que primeiro recusa a proposta.
Na oitava cena o ponto de virada é o próprio chamado para aventura. Fábio propõe à Andrea aplicar o golpe. Em vez de a personagem estranhar a proposta, recusar a aventura ou relutar para aceitar, ela aceita rapidamente. Essa é uma das rupturas feitas. Por se tratar de um curta-metragem que visa experimentar substituir em partes a narrativa lógica por sensações, alguns recursos e elipses temporais foram utilizados. No caso não há mentor nem recusa da proposta, o clímax desse momento é realizado através da câmera lenta e um áudio grave no efeito de sonoplastia. Ao invés de narrar ações sequenciais para atingir o efeito de clímax, sem ação nem fala, é transmitida a sensação desejada, através do impacto representado de forma minimalista.
3) Aparecimento de um Guia ou Mentor que instrui o personagem.
Geralmente nos filmes e fábulas, aparece uma espécie de mentor que instrui o personagem para aceitar a proposta da aventura. Isso se dá para dramatizar ainda mais o clima de tensão, pois aceitar facilmente quebra com o clímax que é criado com o surgimento da proposta. O filme Amargo da Língua, suprimiu esse clímax e de forma minimalista, com recurso de edição, mostra o fogo que acende o cigarro, inflamar em câmera lenta.
4) O personagem é convencido pelo mentor de aceitar a aventura.
Geralmente, o personagem só aceita o chamado para aventura depois do surgimento de um instrutor que o convence. Como foi dito acima, esse recurso foi substituído por um clímax minimalista que destaca o fogo que é símbolo de exaltação, excitação, paixão, assim como a cor vermelha que simboliza o filme. Esse símbolo anuncia o começo das aventuras subversivas do casal protagonista.
Segundo Ato
1) Surge o conflito
Depois de expor as aventuras do casal com a primeira vítima na exposição de arte, o filme exibe o momento em que Robson encontra Fábio no PUB acompanhado por Andrea, Carlos e Bianca. A cena possui um pequeno clímax, Robson encara Fábio na multidão da pista de dança e o golpista se agacha para não ser visto. Quando se levanta, Robson sumiu. Na cena seguinte um segundo clímax acontece, Jéssica e Robson estão esperando por Fábio quando Carlos e Bianca aparecem pedindo carona. Jéssica recusa, mas Robson por ter visto o casal adolescente acompanhar o golpista na pista de dança do Pub, aproveita a oportunidade e convence Jéssica a dar carona aos jovens. Com intenção de se reaproximar do golpista.
2) Personagem passa por testes
Para intensificar o conflito e a tensão, o personagem em foco passa por alguns desafios. Por se tratar de um curta-metragem, é comum ter parte da estrutura reduzida ou simplificada. Quando há maior disponibilidade de tempo de duração da narrativa, aumenta-se o número de peripécias. No caso, a peripécia apresentada é quando a segunda vítima do casal Fábio e Andrea finge estar dormindo e acorda logo após ser furtado, persegue o casal até a porta, mas os golpistas conseguem escapar.
3) Define-se os aliados e os inimigos
Andrea, companheira de Fábio, ao ficar deprimida e ingerir o LSD, delira e com um surto psicótico se despede batendo em Fábio. Robson, a vítima de Fábio que pretende se vingar, se torna amigo de Carlos e Bianca. É convidado por eles para a festa na casa de Fábio, onde aparece de surpresa, com o pseudônimo Diogo. Depois de se vingar e roubar o armário de Fábio, a personagem Bianca faz o mesmo, levando o resto de dinheiro escondido. Fica definido assim que as amizades do personagem são interesseiras, traiçoeiras e efêmeras.
4) O personagem se aproxima da caverna oculta, isto é, o covil do inimigo.
Este momento é apresentado quando Robson chega à casa de Fábio, convidado por Carlos e Bianca para a festa. Robson desafia Fábio a beber a garrafa que ele trouxera. Fábio bebe de uma vez e é envenenado, amarrado e roubado por Robson, que foge deixando o celular de Fábio fora do alcance dele.
Terceiro Ato
1) Seguido de uma provação suprema
Conseguindo escapar da casa de Fábio sem ser impedido por ninguém, consegue furtar todo dinheiro acumulado por Fábio e ser aceito por Dandara, para acompanha-la na viagem pela América Latina.
2) É recompensado
Robson é recompensado pelo crime do qual foi vítima, fazendo seu agressor pagar na mesma moeda e viajando no lugar dele.
3) Resolução dos conflitos.
Por ficar impossibilitado de atender o celular, o conflito se resolve com o criminoso preso em sua própria casa, de forma a não ter seus objetivos alcançados. No lugar de Fábio, o vingador Robson se beneficia da viagem com Dandara.
4) Volta para casa transformado.
Sendo essa a jornada percorrida por Robson, ele se transforma depois de se vingar de Fábio. Robson se torna mais leve e sorri pela primeira vez na última cena do filme.
A jornada do herói entrelaçada na estrutura de três atos compõe a formação da narrativa do filme Amargo da Língua, que segue em parte as formas clássicas mas faz algumas rupturas de forma sutil, como foi exposto.
Se tratando a questão do gênero, é importante salientar que existem relações entre a estrutura e o gênero, pois cada gênero possui convenções únicas, embora em muitos casos essas convenções sejam flexíveis. Por se tratar de um híbrido de suspense e comédia, tanto na montagem quanto na estrutura da narrativa, as características de ambos os gêneros se misturam para gerar um terceiro tipo. Como explica Mckee, ao comentar sobre o processo criativo e a escolha do gênero:
Convenções de gênero são o esquema de rimas do “poema” de um contador de estórias. Elas não inibem a criatividade, elas inspiram-na. O desafio é manter a convenção mas evitar o clichê. ...É uma limitação criativa que força a imaginação do escritor e a levantar-se para a ocasião. Ao invés de negar a convenção e tornar a estória insípida, o bom roteirista considera as convenções velhas amigas, sabendo que vai levantar sua estória para além do ordinário. Com o domínio do gênero, podemos guiar o público através de variações ricas e criativas da convenção para remodelar e exceder as expectativas dando ao público não apenas o que ele esperava com o também, se formos muito bons, mais do que poderiam imaginar. (McKee)
Disso se tira a importância de conhecer as características e variações de cada gênero e os diferentes sistemas de estrutura dramática para compor uma narrativa convincente e fechada mantendo o ritmo e o estilo apropriado dos gêneros. Para inovar ou quebrar com antigos sistemas clássicos, é fundamental conhecer esses sistemas a fundo, pois intuitivamente somos guiados por essas estruturas, que de tão arraigadas se tornaram arquetípicas e fazem parte do inconsciente coletivo. C.G. Jung, no livro Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, define esses dois conceitos utilizados aqui, da seguinte forma:
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o consciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos.
O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia de inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as “motivos” ou “temas”; na psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito das représentations collectives de Levy-Bruhl e no campo das religiões comparadas foram definidas como “categorias da imaginação” por HUBERT e MAUSS. Adolf Bastian designou-as bem antes como “ pensamentos elementares” ou primordiais. A partir dessas referencias torna-se claro que a minha representação do arquétipo – literalmente uma forma preexistente – não é exclusivamente um conceito meu, mas também é reconhecido em outros campos da ciência. (JUNG)
A Jornada do Herói proposta por Campbell segue influências dos conceitos Junguianos de Arquétipo e Inconsciente Coletivo. Conceitos estes amplamente usados no campo das ciências humanas. A psicologia tem esclarecido várias questões voltadas para o campo da narrativa, assim como da recepção do espectador dos diferentes tipos de proposta estética tanto no Cinema quanto na Arte. A corrente surrealista é um grande exemplo de influencia das teorias psicanalíticas na Arte e no Cinema.
Aproveitando as amplas possibilidades da linguagem cinematográfica que estão além da capacidade narrativa convencional, pois o Cinema também é uma ferramenta sensorial e artística, o filme busca introduzir elementos surrealistas e dadaístas quebrando radicalmente, em alguns momentos, com a narrativa-clássica.